Mergulhos (ou, Água-viva e o processo de análise)
- Ana Luiza
- 8 de jul. de 2022
- 2 min de leitura
Atualizado: 24 de set. de 2022
Água-viva, da Clarice Lispector, me acompanhou por alguns lugares. E só acompanhou mesmo.
Eu pegava para ler, algumas páginas iam, de repente travava, deixava de lado - “vou ler e continuar outra hora”. Quando voltava de onde parava, eu já não entendia mais nada. Me propunha, então, a recomeçar, mais uma vez, do ponto zero.
E assim foram algumas vezes, sem sair do lugar - lia, parava, voltava - e algo me incomodava. Quantas vezes li, parei e voltei. Li, parei e voltei. Como assim não estou entendendo? É Clarice, poxa.. não posso desistir dessa forma.
Até que um dia, determinada e até um tanto disciplinada a ler alguma coisa, peguei o livro, mais uma vez, porque ele era a única opção daquele momento no lugar que estava (afinal, ele me acompanhava para cima e para baixo mesmo sem avançar na leitura), e, de repente, em uma sentada, terminei o livro.
Foi uma leitura mergulho. Entrei com todo o corpo.
Dessa vez fiz diferente. Na dúvida - é preciso entender tim-tim por tim-tim? - encontrei outras saídas. Me propus a seguir, mesmo talvez sem compreender isso ou aquilo outro e, de repente, me vi envolvida, emocionada, identificada, não quis parar.
Curiosamente, foi.
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Logo que encerrei o livro, voltei ao título: Água-viva. Água - fluida, fluxo, movimento, sem forma, onda, calmaria, turbulência, vida - Viva. Assim se deu, para mim, a leitura desse livro. Como uma Vida-Viva, acompanhando todas essas características que encontro nas águas. Fiquei surpresa quando me dei conta que, antes mesmo de ter e ler o livro, muito me agradava e fazia pensar essas danças todas que há nas águas - ao mesmo tempo que empurra-abraça-devora-acalma. Foi exatamente dessa forma que me senti lendo aquele livro. Toda envolvida nas águas mas com algo(s) que atravessava, ficava.
Como num estalo, também após a leitura, pensei, e não é assim o processo analítico? Meu “lia, parava, voltava” tinha algo que me causava angústia, uma rua sem saída insistente. De repente, uma brecha.
Uma dúvida.
Por que é que precisa ser dessa forma? Não há outras? Uma nova aposta. O “vai, volta, pára” deu espaço para uma nova direção, segui.. e foi assim que fui me dando conta, passando pelas páginas, ora sem entender, ora emocionada, ora curiosa, que queria seguir, queria ler o que viria nas páginas a seguir, ansiosa pra poder sentir o que o adiante delas me causaria.
A forma como me relacionei com a história do livro e a narrativa em si (como bem faz Clarice) se misturou também com os processos que fazem parte da vida. O processo analítico também se dá um tanto por essa via: outro tempo, outra lógica, nada de linearidade ou regulamentos. Não a toa, "Água-viva".
Mergulhei.
Como na água.
"Mas se eu esperar compreender para aceitar as coisas - nunca o ato de entrega se fará. Tenho que dar o mergulho de uma só vez, mergulho que abrange a compreensão e sobretudo a incompreensão. E quem sou para ousar pensar? Devo é entregar-me. Como se faz? Sei porém que só andando é que se sabe andar e - milagre - se anda (p. 56, Água-viva, Clarice Lispector)"
